O carnaval da BASF ou o dia em que o morro descer e não for carnaval...

Autor: Marcelo Braz
Fonte: http://editora.expressaopopular.com.br

O enunciado acima – “o dia em que morro descer....” – recolhido da letra de Paulo Cesar Pinheiro e Wilson das Neves, sugere um “desfile” e um “enredo” que nada têm a ver com o carnaval midiático que domina as escolas de samba. Especialmente no Rio de Janeiro, parece que vem se confirmando o vaticínio de um samba-enredo de 1982[2] que denunciava a formação de verdadeiras “superescolas de samba S.A.” contra a qual Candeia já lutava no início dos anos 1970 ao romper com a Portela para criar a Quilombo dos Palmares.
As últimas décadas não apenas confirmaram aquilo que era uma tendência nas décadas de 1970 e 1980 como a aprofundou como se pode observar nos enredos patrocinados das inúmeras agremiações de samba, inclusive das tradicionais, como a Vila Isabel, a atual campeã que conseguiu a proeza de combinar um louvável enredo sobre a pequena agricultura com um inaceitável patrocínio da BASF, criminosa empresa alemã originária do velho monopólio serviçal do nazifascismo na Segunda Guerra e uma das maiores produtoras de venenos agrotóxicos do mundo. O grande Martinho da Vila, um dos criadores do enredo e um dos autores da letra do samba-enredo da agremiação, tentou defender o indefensável: como não há nenhuma menção à produção destrutiva do agronegócio, nem ao latifúndio e tampouco à reforma agrária, o autor procurou se explicar, em várias entrevistas concedidas após a vitória, dizendo que quis fazer um “carnaval alegre” sem misturá-lo com questões políticas. Fez na verdade a festa do agrotóxico associando a BASF a temáticas – reconhecidas pelas organizações do campo em carta enviada à Vila Isabel como próprias à agricultura familiar – que em nada se relacionam às suas atividades comerciais. Se formos bem generosos podemos dizer que Martinho contou uma história pela metade. Mas se formos verdadeiramente rigorosos devemos asseverar que nosso grande compositor acabou por promover uma profunda mistificação ideológica da questão agrária no Brasil. Deu, assim, um gigantesco passo atrás em relação a um de seus mestres, Noel Rosa, que com sua obra tão bem representou, em inúmeras canções, as “coisas nossas, muito nossas”.
É evidente que tal avaliação não resume nem o compositor, autor de obras que se aproximam do nacional-popular[3], nem a agremiação de Vila Isabel (basta lembrar o enredo de 1988 – Kizomba, festa da raça[4] – que destoou em muito daquela tendência referida na abertura deste texto), e nem mesmo a própria história do samba. Devemos buscar explicações nos aspectos da formação social brasileira que legaram traços estruturais à nossa formação cultural, engendrando entre nós uma particularidade que Coutinho designou por questão cultural. O intelectual baiano cunhou a expressão para abarcar a problemática cultural brasileira como uma questão diretamente relacionada à nossa formação sócio-histórica, particularizada por uma via “não clássica” de introdução das relações capitalistas, legando-nos uma burguesia pouco desenvolvida do ponto de vista das ideias liberais (mesmo após o momento em que elas “entram no lugar”), débil economicamente, e por isso dependente e submissa, e, sobretudo, politicamente antidemocrática e violenta, incapaz de conviver com elementos democratizantes da vida social. Tal configuração morfológica da burguesia brasileira engendraria uma vida política autocrática, excludente e pouco afeta à participação dos “de baixo”, que foram sistematicamente excluídos dos processos políticos mais significativos, uma vez que eles se deram quase sempre “pelo alto”.
Mais que isso: tal formação social e tal estrutura de classes respondem por uma formação cultural marcada pela “inautenticidade” e pela submissão ou por aquilo que Nelson WerneckSodré denominava por “transplantação cultural”. A questão cultural da qual fala Coutinho é fruto dessas contradições: expressa, num só tempo, o caráter sociocultural “inautêntico” e submisso da burguesia brasileira e, ao mesmo tempo, o quadro social que historicamente buscou excluir, por meio da estrutura social e econômica profundamente desigual e pelos canais políticos que lhes são inerentes, o proletariado de um papel protagônico no campo cultural. Um dos fenômenos desdobrados dessa questão cultural se exprime numa histórica interdição do nacional-popular na cultura brasileira, que traria consequências indeléveis para seus variados segmentos, para a música popular em particular e para o samba especialmente.
Materializou-se entre nós um típico desenvolvimento desigual e combinado, exprimindo-se numa particular articulação do arcaico com o moderno, pela qual a burguesia se constituiu e é constitutiva, não como um traço anômalo ou atrasado de sua genealogia, mas como uma forma de ser específica que lhe é inerente, estruturadora e indelével. No plano da cultura, essa forma peculiar que configura a estrutura política no Brasil irá se exprimir também, segundo a formulação de Coutinho[5], como uma verdadeira questão cultural na qual, tal como no plano da política, observam-se processos “pelo alto”, que impactaram tanto as camadas populares – cujas reivindicações foram sistematicamente reprimidas e suas expressões políticas e culturais cooptadas – quanto os setores médios urbanos.
No interior desses setores, desenvolveu-se uma forma particular brasileira daquilo que Lukács designou como “intimismo a sombra do poder”, segundo a expressão de Thomas Mann empregada para analisar a realidade da literatura alemã. Lukács o utilizou como categoria analítica da crítica literária para expressar a situação social na qual os intelectuais estão alheios à realidade que os envolve no sentido de verem nela qualquer possibilidade de mudança significativa, uma vez que o poder político os exclui das decisões por meio de conciliações “pelo alto”. Eles acabam, assim, adotando uma postura (como parece ter intentado Martinho da Vila) aparentemente autônoma aos interesses das classes dominantes, quando na verdade tal aparência esconde a funcionalidade dessa intelectualidade cujas ideias surgem inofensivas já que não se remetem aos aspectos centrais da vida social, vertendo-se até mesmo numa “apologia indireta” do poder.
É importante ressaltar que tal situação – quando a intelectualidade adere indiretamente ao poder – só se estrutura quando há uma base material que a sustente. Apenas quando os intelectuais, compondo parte dos setores médios urbanos, conseguem encontrar na sociedade seus meios materiais de vida, ou seja, quando se dá a incorporação desses setores pela divisão social e técnica do trabalho, composta em seu interior pelas atividades inerentes a uma nascente indústria cultural, só aí é que se criam as condições objetivas para uma eventual adesão da intelectualidade ao poder. Ou seja, tanto o “intimismo à sombra do poder” quanto a consequente “apologia indireta” são produtos simultâneos de dois pressupostos: a ausência de uma burguesia revolucionária capaz de transformar, profunda e autonomamente, as relações pré-capitalistas existentes; e, paradoxalmente, quando se estruturam as primeiras relações tipicamente capitalistas desdobra-se uma tendência de cooptação cultural por meio das ocupações profissionais que são criadas no interior da divisão social do trabalho. Essa mesma burguesia, incapaz de promover mudanças sem realizar acordos “pelo alto”, dependerá dos elementos que se formam entre os setores populares para forjar uma ideia de povo que possa ser parte constitutiva da ideia de nação. Nesse sentido, a cooptação cultural se deu valendo-se da indústria cultural que serviu, para além de espaço de acumulação de capital, para emoldurar uma imagem de povo, para qual o samba foi utilizado.
Se, por um lado, o modus operandi burguês no Brasil – geneticamente inclinado às alianças com os segmentos mais retrógrados da sociedade como forma de afastar qualquer possibilidade de participação política “de baixo” nos rumos do país – foi responsável por introduzir entre nós uma tendência à cooptação dos elementos populares presentes na vida cultural (e com o samba não foi diferente, operando-se nele verdadeiros transformismos,[6] tornando-o símbolo da “identidade nacional”), por outro não foi capaz de impedir que o samba se tornasse, através de um processo dialético rico em contradições, uma das formas de resistência encontradas pelos segmentos de classe afastados do poder político, um verdadeiro canal de explicitação de suas demandas que, de modo muito diverso, aparecem nas composições do gênero sob a forma de resistência, de denúncia, de lamentação, de sátira ou de anedota.
Resistência e denúncia que não deixaram de existir nas escolas de samba que, mesmo que cooptadas seja por empresas capitalistas como a Basf, seja pelo Estado como o de Vargas nos anos 1930/1940, invariavelmente encontraram formas alternativas de cantar, de algum modo, o dia em que “o tema do enredo será a cidade partida/o dia em que o couro comer na avenida/se o morro descer e não for carnaval”.

Marcelo Braz


[1]O texto incorpora alguns dos conteúdos dos capítulos que preparei para o livro Samba, cultura e sociedade que organizei recentemente e que sairá em breve com a chancela da Expressão Popular.
[2]Do Império Serrano, de autoria de Aluisio Machado e Beto Sem Braço.
[3]Como, por exemplo, na letra de O pequeno-burguês: “Felicidade! Passei no vestibular/Mas a faculdade/É particular/Livros tão caros/Tanta taxa prá pagar/Meu dinheiro muito raro/Alguém teve que emprestar/O meu dinheiro/Alguém teve que emprestar/Morei no subúrbio/Andei de trem atrasado/Do trabalho ia prá aula/Sem jantar e bem cansado”.
[4]De Luis Carlos da Vila, Jonas e Rodolpho.
[5] Coutinho, C.N. In: Braz, M. Samba, cultura e sociedade. Expressão Popular, São Paulo (no prelo).
[6]Como ocorreu, não sem contradições, com as agremiações de samba pesquisadas no imprescindível As escolas de samba do Rio de Janeiro, de Sérgio Cabral (São Paulo: Lazuli, Companhia Editora Nacional, 2011).

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